Pequeno, ouvia o refrão desta música de Chico Buarque
cantado pela boca de meu pai, que repetia incessantemente: “Olha aí, é o meu
guri”. Era uma de suas formas de demonstrar carinho, imaginava eu, naquela
época com meus 3 ou 4 anos. Esta é, provavelmente, a minha primeira memória musical,
uma lembrança que me traz bons sentimentos e uma nostalgia tremenda da minha “meninice”.
Cresci e nunca tinha parado pra prestar atenção de fato ao
que dizia toda a letra dessa música. O recorte que meu pai fazia e o gesto de
afago que ela representava me deram uma memória afetiva muito boa, mas
equivocada. Ouvindo um pouco mais da obra do Chico durante o ano que passou,
esta música voltou a fazer parte da minha vida, agora como um curioso ouvinte
da grande obra deste compositor.
E para a minha surpresa, me deparei com uma letra de extrema
crítica social. O “guri” não era eu, uma criança que teve de tudo: educação,
comida, um nome, um lar e sobretudo muito amor. Ele era na verdade o menino
pobre, nascido prematuro (“Não era o momento dele rebentar”), filho talvez de
uma mãe solteira, analfabeta que não tinha nem documentos de identificação
civil (“E eu não tinha nem nome pra lhe dar”).
Um menino que, a despeito das condições adversas, queria
vencer na vida. Dizia pra mãe que “um dia ele chegava lá”. Apesar de implícito
por meio de metáforas, parece que, para realizar seus sonhos, este menino
pobre, morador de uma favela (“Chega no morro”), escolheu o caminho do crime
(tráfico e assaltos) pra poder realizar seu sonho.
Esta mãe conta a história para alguém (“Seu moço”), um
curioso por saber quem era o menino morto estampado na manchete de um jornal,
identificado apenas pelas iniciais de seu nome. Em algumas análises que vi pela
internet, falam que a mãe não queria acreditar que o filho era um “marginal” e,
por isso, criou em sua cabeça uma ilusão. Com o suor do seu "trabalho" o guri
dava a mãe presentes, uma bolsa com tudo dentro (talvez uma bolsa roubada),
inclusive com os documentos de outra pessoa, que a mulher
acreditava que pudesse identificá-la.
Poderia também fazer a leitura de que, apesar de todos os
indícios, este menino era realmente um trabalhador, que por ter origem humilde
é confundido com bandido e morre por um equívoco (preconceituoso) da polícia.
Já ouvimos algumas histórias assim, infelizmente.
Algo, porém, sobre o que todos concordam é o amor
desta mãe pelo seu guri. Imagino-a dizendo, com lágrimas nos olhos “Ai o meu
Guri, olha aí...”. Mas, sobretudo com um amor carinhoso e incondicional daqueles
que, dizem, só uma mãe consegue ter por um filho. O mesmo amor que meu pai, lá
na minha tenra infância, demonstrava enquanto, olhando pra mim, cantava os
mesmos versos.
A bela interpretação de Beth Carvalho pra essa música que eu consigo ouvir de dois jeitos diferentes.
Legal, Gabriel! Bonita a releitura da canção. De vez em quando acontecesse isso mesmo, né? A gente demora anos e anos para compreender com exatidão uma canção. Mas ela já nos tocava antes, mesmo sem a total compreensão.
No fundo, acho que essa é uma mística da música: ela adquire sentidos próprios para quem ouve, independente da intenção do autor. Quem disse que o "meu guri" não se referia a você?