O fim de noite no bairro da Glória, Rio de Janeiro, foi de samba-rock. Lá pelas tantas minha amada e eu, já com as cabeças cheias de cerveja, fomos para um boteco na rua de trás ouvir o “boogie-woogie sem pandeiro”* de uma banda de rock.
Tomando umas e outras, eis que, num intervalo, chega um desses senhores boêmios, magro de tanto trocar as refeições por “umazinha”, pele negra, cabelos brancos, olheiras profundas. Pede um trago da loura gelada na minha mesa. Dou um copo. Ele fica ali na mesa ao lado curtindo o rock e puxa papo.
Fala que o som é bom. Diz com palavras tortas que se pegasse aquela bateria faria um som melhor que o dos jovens roqueiros. Mas eu, intrigado, indago.
- O senhor tem cara de quem sabe bater um tamborim, to errado? -, era a deixa que faltava. Se desculpando a cada três palavras ele vai chegando mais perto. Quando vemos já está sentado conosco. “Vocês me desculpem, eu gosto mesmo é de um pandeiro. Me desculpa. Eu tocaria melhor que eles aí. Desculpa. A música tá legal”.
- Samba é muito bom -, digo. Papo vai, e ele, depois de pedir desculpas mais uma vez, diz: “Eu tenho um samba assim:”, e canta pausadamente o refrão do que parece ser um samba canção bonito toda vida. “A lição da vida vai lhe ensinar a razão do viver.”
“Bonito”, dizemos eu e ela. “Já quiseram me comprar ele, mas eu não quis”, tentando endireitar a embriaguez. A essa altura, guitarra, baixo e bateria já tinham sido guardados.
E vai proferindo todas as palavras da letra linda cheia de dor e amor por aquela mulher que precisava aprender uma lição. Nessas horas a gente pede a Deus um gravador ou, no mínimo, uma memória de elefante.
Papo vem, e virar confidente de bebum era o caminho anunciado. Lembra da mulher que inspirou a música. Passa a mão no rosto antes de começar a contar uma das histórias. “Um dia a gente foi morar em Belém do Pará. Ela com o Deleon nos braços”, para, respira fundo, os olhos vermelhos marejam, passa a mão no rosto mais uma vez.
Pergunto: “Deleon é o seu filho?”. Faz que sim e continua.
- E o malandro quis se engraçar com ela, ela com o Deleon nos braços! -, sem perguntar, faço a relação de que talvez ela também tenha se engraçado com o malandro. Ele vai em frente: “Perguntei se ele sabia de onde eu era: ‘Rio de Janeiro, moro na favela’. Dei lhe uma lição.”
- Quiseram defender, mas no fim todo mundo me deu razão. Ela com o Deleon nos braços!? -, repete desolado, como quem diz: “Imagina só!”. Descobrimos que ele, apesar da mágoa que parece sentir, e provavelmente da que tenha causado à companheira, ainda é casado com ela. “Você me desculpa. Falo pra ela até hoje: ‘a vida ensina’.”
O papo está bom. Olhamos um para o outro sorrindo. “Que figura rara! E que amor real!”, penso e imagino ter pensado ela também. A hora já vai adiantada, o sono já vencendo, peço a saideira e tento, sem sucesso, repetir o refrão.
- Como é que é: ‘A razão da vida...’.
- A lição da vida vai lhe ensinar a razão do viver -, corrige para que eu, enfim, memorizasse. Aperto sua mão.
- Como é o nome do senhor?
- Jaime.
- E da sua senhora?
-Sandra. Desculpa qualquer coisa.
- Que nada. Prazer conversar com o senhor!
Lição da vida aprendida, vamos embora.
* Trecho adaptado da música Chiclete com Banana - Jackson do Pandeiro
Que belo encontro! De vez em quando a gente dá a sorte de esbarrar com uma figura rara dessas. Bom que aproveitou a sua!
"A lição da vida vai lhe ensinar a razão do viver". Bonito!