Andar de trem no Rio de Janeiro pode ser uma experiência interessante de observação. Várias realidades diferentes passam por você, por onde passa o trem. Às margens da ferrovia, os marginalizados se mostram e todos os tipos de pessoas, das mais diferentes raças, credos, condições sociais se misturam. Sempre que preciso andar reparo várias coisas. Dessa vez resolvi registrar.
"Senhores passageiros. Cuidado com o vão entre o trem e a plataforma!", anuncia o auto-falante. Uma mulher vendendo doces com o filho recém-nascido no colo numa espécie de suporte “canguru” é uma imagem que deixa perplexo. Misturam-se revolta e admiração. Revolta pelas condições a que o subemprego submete seres humanos ali, aos nossos olhos. Admiração por essa mulher anônima que precisa se alimentar e ao filho (e talvez outros). Ela passa e oferece seu produto, sem se fazer de vítima, sem pedidos de esmola, simplesmente faz seu “trabalho”.
Mais a frente, olhando pela janela, casas, praticamente em cima da linha, disputando espaço com o trem. Não dá pra saber se foram elas ou a linha férrea que chegou ali primeiro. As cidades têm pela frente o desafio de diminuir o déficit habitacional, não apenas construindo casas. Mas dando condições reais de habitação para milhares de pessoas. Li que a estimativa é de que no Rio o déficit é de 478 mil moradias. Mais ou menos 1.800.000 pessoas residindo em condições precárias. “E imaginem escutar o barulho infernal do trem passando dentro do seu quintal diariamente”, penso.
"Próxima estação Deodoro, saída pelo lado direito". Do lado de dentro, um menino que deveria ter uns 8 ou 9 anos de idade passa vendendo picolé. Ele deveria estar na escola, fazendo o dever de casa ou brincando na rua à uma hora dessas – coisas que eu fazia na idade dele. Logo atrás dele outro menino, com a roupa puída, descalço e sujo, pede esmolas. A verdade é que essas crianças, por estarem nas ruas sem a tutela de uma família bem estruturada, estão sujeitas aos mais diversos riscos como exploração sexual, dependência de drogas, violência. Outra verdade é que elas muitas vezes estão fugindo dessas mesmas situações dentro de casa.
Pela janela muros e fachadas exibem pixações. Desenhos obscenos, passagens bíblicas, siglas de facções criminosas, apelidos de “bandidos”, rabiscos sem sentido para quem vê e até mensagens políticas. Para a sociedade vandalismo puro. Para os pixadores, expressão, confronto direto com o poder público repressor, fragmento material da busca de prestígio e reconhecimento público – tentativa de sair do anonimato através de uma assinatura pública.
Na próxima estação entra um homem bem vestido que faz a propaganda: “A chave de fenda que faz muito mais do que uma chave comum. Anula a corrente de eletricidade. Não permite que você leve choque. Ótima para arrumar aquele ferro de passar roupas estragado, ou aquela tomada enguiçada. Apenas 2 reais”. Várias pessoas compram. Ele repete a publicidade no final do vagão, enquanto o trem para em outra estação. Neste momento, fiscais da prefeitura à paisana se identificam e rendem o vendedor ambulante que é obrigado a descer do trem.
Provavelmente ele terá seus produtos apreendidos. Prejuízo grande somado à multa que terá de pagar pela infração. No trem comentávamos uns com os outros. “Agora você vê. O cara estava só trabalhando...”, disse-me um desconhecido. Mais uma vez, um enorme desafio que os políticos eleitos daqui há alguns dias deveriam enfrentar de verdade. Porque aquele homem estava ali? Provavelmente porque lhe faltou um emprego que pagasse dignamente. A repressão da fiscalização é inútil se não for atacada a cerne do problema da informalidade.
"Favor não ultrapassar a faixa amarela". Na volta pra casa o trem vai lotado. Pessoas se empurram para entrar e sair dos vagões escassos. Cadê a quantidade suficiente de trens para levar todo mundo pra casa com o mínimo de conforto que até um animal mereceria? Num dos bancos, dois homens desconhecidos dormem de boca aberta, um encostado no outro, numa cena engraçada. A proximidade que a lotação proporciona quase torna os passageiros amigos íntimos.
Às margens da linha férrea, lixo por todos os lados – muito lixo. Como eu desceria na última das últimas estações, vi o que sobrou dos inúmeros doces e salgados, biscoitos e picolés, cervejas, refrigerantes e garrafas d’água compradas pelos passageiros durante a viagem. As latas de lixo nas portas vazias, e o chão repleto de embalagens. Falta de educação. Minha roupa amassada, meu corpo cansado. E eu me sentindo, como aquele vagão.
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De dentro do vagão
26 de setembro de 2010
Postado por Unknown às 12:11 | Sessões: textos | Enviar por e-mail Postar no blog! Compartilhar no X Compartilhar no Facebook | |
Pois é... e agora você vê: Você estava só trabalhando, né? rs
Ah, que delícia de texto!
É tanta diversidade, tanta perversidade... que às vezes passa batido e a gente nem vê.
Parabéns!!!